quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que se queima hoje?

                                                                                                                                       Fernando Arosa


                Sem dúvida, mais uma vez nos assustamos com a violência em nossa cidade. O que nos atinge de forma indireta torna-se objeto de crítica, posicionamento, reflexão. Algumas perguntas necessárias ouço pelas esquinas: onde estão as autoridades? Quando teremos segurança? Nossos impostos, onde estão?
                Penso em algumas outras questões porque, como sempre, quero entender a raiz do problema. Sei que não é simples, nada com seres humanos é muito simples.  Entendo que há muitos anos vivemos e convivemos com as desigualdades, e o tráfico se alimenta delas. Os números comprovam que o que se queima hoje não são os automóveis, ônibus... e, sim, o desejo de ter, a constatação da inalcançável ordem social, o que se queima agora, mais uma vez, é a falta da distribuição de renda, são as leis, o que se extingue é o direito.
                Nessa democracia do Brasil, o que importa é o que se pode consumir. As relações de direito, cada vez mais dilaceradas, não fazem parte da agenda dos governos, das escolas, das instituições religiosas, dos condomínios, da praça pública... estamos vendo a queima metafórica dos direitos do cidadão, sobretudo do direito à segurança.
                O Artigo III da Declaração dos Direitos Humanos prevê que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade, e à segurança pessoal”. E aí?
                E ainda, de forma poética, o poeta Thiago de Melo decreta em O Estatuto do Homem em seu Artigo VII “Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo”.
                Para onde iremos? Qual a opção: a civilidade (e seus direitos) ou a barbárie?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Casas de cristal

                                                                                                                                       Fernando Arosa


                Os jornais de hoje trazem  notícias como se vivêssemos tudo igualmente todos os dias. Vejo isso como falência da criatividade de nós mesmos. Procurei uma notícia inusitada aqui, outra ali, mas nada que me desse motivo para comemorar e fazer uma crônica daquelas poéticas, pra cima, crônica de sorrir reflexivo.
                Uma das notícias que me causou espanto foi a de que agora podemos ter enterro online, ora vejam só, posso morrer aqui e ser velado via web cam. Digo desde já que não quero, vou ter vergonha de estar morto e sendo filmado, que coisa, me deixem morrer como antigamente, quem não puder se despedir de mim pessoalmente, mande um telegrama que é um símbolo de tecnologia e que mantém seu charme e elegância.
                O papa comentou que admite a camisinha para evitar a Aids. Será que ele achava que alguém ainda segue todas as recomendações da Igreja, mesmo os católicos praticantes usam camisinha, planejam os filhos e outras coisitas mais...
                O que me provocou hoje no noticiário foi a página da educação no Brasil. Entre outras coisas ditas, o que deram ênfase foi ao  fato de a profissão de professor não ser mais procurada. Muitos são os motivos, porém, neste primeiro momento em que resolvo falar um pouco sobre isso devo começar com uma simples conclusão: nada pode modificar enquanto os investimentos na área forem essa vergonha que é no Brasil. Nossa revolução precisa seguir a lógica do capital. Quando o dinheiro é pouco e mal aplicado, não se pode esperar muito.
                Jovens não procuram mais a profissão de professor porque sabem das dificuldades, não apenas as que são publicadas nos jornais, mas porque vivenciam nas salas de aula as deficiências, as inadequações. Nossas escolas ainda estão funcionando como depósitos de pessoas que precisam estar ali, mas não sabem muito bem com qual finalidade. Professores com baixos salários, sem tempo para reciclagem, trabalhando em duas, três ou mais escolas, atendendo a 500 alunos, como isso pode dar certo?
                Os espaços escolares não estão aparelhados para enfrentar as demandas de hoje, não basta computadores, não significa revolução. Vejo nas escolas aparelhos tecnológicos chegando, mas a falta de tempo, de organização, de planejamento ainda vigoram. Nossas escolas são como casas de cristal, frágeis. Muitas ações governamentais são louváveis enquanto projeto, mas e o dinheiro? É preciso mais dinheiro para a educação. Hoje faltam professores, amanhã faltarão médicos, engenheiros, filósofos, comunicadores, gente qualificada e formada para seguir construindo o país. A Educação está entregue em mãos que pedem, mais uma vez, seriedade, objetividade e políticas públicas que resgatem o profissional para sua vocação: educar. Com dignidade.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Os versos acima foram publicados originalmente no livro "
Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.  Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Menina, amanhã de manhã

Hoje a dica mais uma vez é musical. Vejam que maravilha: Orquestra Sinfônica e coro do Estado de São Paulo, apresentando uma música de Tom Zé, na voz de Mônica Salmaso. Imperdível!!! Aproveitem.

http://www.youtube.com/watch?v=sivP3e6ipB0

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Morte de Chuquinha

                                                                                                                                       Fernando Arosa


            ¾ Dona Ivete, ô Dona Ivete! ¾ gritou Georgina, aflita e preocupada.
            ¾ O que foi, menina,? Que aflição!
            ¾ Não tenho boas notícias, não.
            ¾ Ah, meu Deus, Luisinho, Carlinhos, Dayse, quem foi, o que aconteceu?
            ¾ Não foi nada com os meninos. Calma, é com a Chuquinha.
            ¾ Já falei para não deixarem a porta...
            ¾ Não adiantou, Dona Ivete. Chuquinha ´tá morta.
            Foi um desalento. Nunca tinham vivido tal tristeza. Foi a primeira vez que se experimentava a ausência infinita de alguém. Nunca mais veriam Chuquinha, companheira das horas mais divertidas. Era quase humana!. Melhor: não falava a língua dos adultos.
            Muitas foram as participações: almoço de domingo, dias de trovoada, passeios de bicicleta, estava lá, uma galinha exemplar, com olhar participativo, gestos peculiares, andar expressivo. Várias vezes tentaram imitá-la, mas nem os meninos, nem as meninas da rua conseguiam alcançar a destreza de Chuquinha.
            Dayse passou uma temporada levando Chuquinha para o convívio das cobertas e travesseiros. Julgava que o tempo poderia aplacar sua amiga. Amizade era aquela. Dayse e Chuquinha! Que firmeza de propósitos! Que ética!
            Os meninos a tratavam com certa desconsideração. Nas ruas do bairro, colocavam a penosa exposta a todo tipo de julgamento; não a poupavam. Sabiam que suas asas não eram suficientes para o voo, mas, mesmo assim, não podiam perder a aventura. E assim, foi lançada, do alto da mangueira, no centro da praça que era envolvida por ruas com nomes de flor: rua das violetas, das rosas, das margaridas. Ruas que faziam do Valqueire, no Rio de Janeiro, um grande quintal, o deslimite dentro das fronteiras da propriedade.
            Chuquinha fora envenenada.
            A notícia correu, assim como as lágrimas no ritual de despedida, feito no fundo do quintal de sua casa. Lá ainda hoje há quintais, alguns animais estimados, mas Chuquinha, fotografada em papel Kodak, permaneceu na vida dos meninos que cresceram e se recordam, junto com Dona Ivete, do sol que batia na janela e iluminava os almoços de família.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Complexo de subtração

Fernando Arosa


                Ronda entre nós mais uma síndrome, uma sequência de eventos sintomáticos que nos permite a classificação de complexo de subtração.
                Sabe-se que precisamos classificar tudo para que a vida pareça um pouco mais segura, mas agora me sinto atingido diretamente e de forma enviesada pelo complexo de subtração, explico: perceba a fala            das pessoas que emitem opinião no seu cotidiano, muitas delas se colocam à parte de tudo. Já percebeu? Nunca se fazem incluir no objeto criticado, o que é normal, mas peço apenas um pouco só de autocrítica.
                A palavra povo é um exemplo desse complexo, afinal, povo é sempre o outro, o resto, aqueles, nunca eu.
                Nossa última eleição fortalece a definição desse mal, pois analfabeto é só o Tiririca, o desonesto é só o político, corrupto é todo mundo menos eu.
                Quando se trata de ofensa, então, a coisa fica mais complexa, pois pobreza virou arma. Circulam na Internet, nos chamados sites de relacionamento, as mais diferentes opiniões sobre Dilma e Serra, até aí tudo bem, opiniões diversas alimentam a fome democrática, nada mais saudável, porém, opiniões curtas e não fundamentadas servem apenas para fazer crescer o ódio e a segregação. Opiniões como “essa corja”, “esses pobres vão ver”, não são opiniões, são julgamentos que fazem de seus donos indivíduos que se subtraem do todo, vendo-se como especiais, aqueles que, não se sabe por que, se consideram acima do bem e do mal.
                Fico sem saber a que classe pertenço, qual grupo me identifica como, pelo menos, próximo. Serei eu rico ou pobre? Classe C ou D? Povo pode ser inteligente? Caramba, e se eu não tivesse uma religião? E se a partir de agora eu decidir me candidatar a algum cargo público, me tornarei corrupto compulsoriamente?
                Subtraio-me, então, como os outros, e percebo que não há cura para esse mal. Peço perdão por tudo que aparento ser e, por favor, “me incluam fora dessa”.