quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Sandálias Novas

                                                                                   Fernando Arosa

O carrinho era do tipo Jeep, com luzes piscando, preto, escrito Police. No alto, um emblema. Suas rodas altas. As portas abriam e, acionado o botão, ele saía em direção a algum chamado de emergência, um ladrão qualquer, um banco sendo invadido... a cabeça ia longe. Nessa época do ano, ele sempre retorna, assim como outros brinquedos. Sobretudo aqueles me faziam transformar o espaço real em fantasia, o tempo sequer existia.
                A infância, da minha infância, era um recheio de vida com muitas emoções. Ficava à espera de uma corrida, de uma árvore a subir, de uma bicicleta,  do colo nas horas difíceis, dos irmãos, primos e primas, tios e tias. No Natal, tudo isso era um sinônimo de reunião. O Natal da infância.
                Hoje me senti na obrigação de cometer uma crônica de Natal. Sei que tudo já foi dito, mas meu Natal é sempre um retorno aos brinquedos ganhados, às emoções vividas e às expectativas no futuro do pretérito.
                Adultos não esperam Papai Noel, ou melhor, fingem que não esperam. Aguardam a oportunidade de se tornarem pais ou tios (de qualquer natureza) para correr e alimentar a criança novamente. É claro que esperamos o bom velhinho. Mesmo escandalizados com os preços, com a inabilidade das pessoas, com as angústias da vida madura, estamos lá, acreditando que o renascer seja possível.
                É assim que os sonhos não deixam de existir: através do sorriso do outro, do abraço, da divisão das tarefas, dos encontros, da certeza de que ainda somos possíveis.
                Passei pela rua e o movimento é frenético. Entrei na galeria para pegar minhas sandálias no conserto. O sapateiro sorridente me desejou um Feliz Natal e afirmou, categoricamente, que posso andar mais uns cem quilômetros com o novo calçado, recuperado com afinco e maestria. Estou de sandálias novas e sigo com a ansiedade de ver meus filhos brilhando de alegria, renovados com nossas orações...
                Um Feliz Natal para todos.
               

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O homem enigmático

                                                                                                                Fernando Arosa 
            Ele acordou no horário de sempre, responsável, levantou-se pronto para o dia que surgia azulado.
            Notícias na TV o prenderiam em casa, porém as obrigações profissionais o expulsaram da mesa do café; beijos na esposa, filhos e rua.
            Os olhos encurtaram-se ante os raios solares fortes e irrefutáveis. Promessas de um dia de cinema. Pensava estar em um set, não se lembrava de dia tão iluminado, perfeito para sentir-se livre, com alguma filosofia, dores na alma, mas livre.
            Entrou na condução, lembrou-se da agenda cheia e desceu. Caminhou pela cidade com um ritmo ancestral, não teve pressa. Teve a justa e primitiva certeza de fazer parte daquele cenário: céu azul, linha do horizonte, mar, montanhas, pássaros... Anulou o resto que via e se integrou ao que o interessava e encantava.
            Chegou tarde ao escritório, pe´s cansados e coração e alma refeitos. Inquirido pelo atraso, respondeu:
            _ A manhã...sabem? Lembram da manhã? Estava perfeita!!! Me entreguei, só isso...

                                               ( Texto baseado em crônica de Paulo Mendes Campos – O pombo enigmático – 1962)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Preguiça

                                                                                                                      Fernando Arosa

             Tarde da noite e nada! Dia seguinte, nada. Mais uns dias, horas a fio e nada ainda. Foi assim durante uma semana, quase duas. Na obscuridade, no fundo de uma gaveta imaginária, um depósito. Fiquei por lá, sem lançar mão de minhas armas. Motivo: preguiça.
            Acordei remoendo após uma semana, com dor no corpo de tanta preguiça. Não andei, não li, não consertei a bicicleta, não arrumei o armário que me espera há seis meses, não telefonei para uns e outros, percorri um site aqui outro ali, mas escrever, nada.
            Levei e apanhei os filhos na escola, com eles eu brinquei, aprendi que baleias podem ser venenosas (pelo menos as do meu filho), constatei que minha filha já se dá o direito de ficar emburrada, o que só me causa risos, trabalhei, trabalhei, mas escrever, nada, por pura preguiça.
            Essa inércia momentânea, por vezes, se dá em outros recantos da vida. Quantas vezes deixamos de reunir nossos amigos em nossa casa, para bater um papo, jogar conversa fora, trocar sorrisos? Quantas e quantas vezes fazemos dramalhão porque trabalhamos muito e deixamos a energia parada, sem circulação, nos nossos recantos, não fazemos nossa faxina interna por pura preguiça.
            Refazendo o caminho, vi que em muitos momentos abandonamos nossos direitos porque não queremos ter trabalho. E em nome desse não querer, recuamos e recusamos nosso progresso enquanto grupo.
            Escrever não é tarefa das mais fáceis. Temos que nos expor, refletir, escolher, minuciosamente recolher do cotidiano um motivo, trabalhar a sintaxe, a semântica... Para quem pegou o gosto, uma semana é muito tempo, por isso, eis aqui o antídoto.
            Que tal marcar um almoço no final de semana com alguém que não vê há muito tempo? Não dê desculpas, hoje é muito fácil cozinhar. Por que não aproveita a sexta-feira e marca para ver a árvore da Lagoa? Se der sol, encontre a turma da praia de antigamente, mas não se deixe mais abandonar de si mesmo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que se queima hoje?

                                                                                                                                       Fernando Arosa


                Sem dúvida, mais uma vez nos assustamos com a violência em nossa cidade. O que nos atinge de forma indireta torna-se objeto de crítica, posicionamento, reflexão. Algumas perguntas necessárias ouço pelas esquinas: onde estão as autoridades? Quando teremos segurança? Nossos impostos, onde estão?
                Penso em algumas outras questões porque, como sempre, quero entender a raiz do problema. Sei que não é simples, nada com seres humanos é muito simples.  Entendo que há muitos anos vivemos e convivemos com as desigualdades, e o tráfico se alimenta delas. Os números comprovam que o que se queima hoje não são os automóveis, ônibus... e, sim, o desejo de ter, a constatação da inalcançável ordem social, o que se queima agora, mais uma vez, é a falta da distribuição de renda, são as leis, o que se extingue é o direito.
                Nessa democracia do Brasil, o que importa é o que se pode consumir. As relações de direito, cada vez mais dilaceradas, não fazem parte da agenda dos governos, das escolas, das instituições religiosas, dos condomínios, da praça pública... estamos vendo a queima metafórica dos direitos do cidadão, sobretudo do direito à segurança.
                O Artigo III da Declaração dos Direitos Humanos prevê que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade, e à segurança pessoal”. E aí?
                E ainda, de forma poética, o poeta Thiago de Melo decreta em O Estatuto do Homem em seu Artigo VII “Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo”.
                Para onde iremos? Qual a opção: a civilidade (e seus direitos) ou a barbárie?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Casas de cristal

                                                                                                                                       Fernando Arosa


                Os jornais de hoje trazem  notícias como se vivêssemos tudo igualmente todos os dias. Vejo isso como falência da criatividade de nós mesmos. Procurei uma notícia inusitada aqui, outra ali, mas nada que me desse motivo para comemorar e fazer uma crônica daquelas poéticas, pra cima, crônica de sorrir reflexivo.
                Uma das notícias que me causou espanto foi a de que agora podemos ter enterro online, ora vejam só, posso morrer aqui e ser velado via web cam. Digo desde já que não quero, vou ter vergonha de estar morto e sendo filmado, que coisa, me deixem morrer como antigamente, quem não puder se despedir de mim pessoalmente, mande um telegrama que é um símbolo de tecnologia e que mantém seu charme e elegância.
                O papa comentou que admite a camisinha para evitar a Aids. Será que ele achava que alguém ainda segue todas as recomendações da Igreja, mesmo os católicos praticantes usam camisinha, planejam os filhos e outras coisitas mais...
                O que me provocou hoje no noticiário foi a página da educação no Brasil. Entre outras coisas ditas, o que deram ênfase foi ao  fato de a profissão de professor não ser mais procurada. Muitos são os motivos, porém, neste primeiro momento em que resolvo falar um pouco sobre isso devo começar com uma simples conclusão: nada pode modificar enquanto os investimentos na área forem essa vergonha que é no Brasil. Nossa revolução precisa seguir a lógica do capital. Quando o dinheiro é pouco e mal aplicado, não se pode esperar muito.
                Jovens não procuram mais a profissão de professor porque sabem das dificuldades, não apenas as que são publicadas nos jornais, mas porque vivenciam nas salas de aula as deficiências, as inadequações. Nossas escolas ainda estão funcionando como depósitos de pessoas que precisam estar ali, mas não sabem muito bem com qual finalidade. Professores com baixos salários, sem tempo para reciclagem, trabalhando em duas, três ou mais escolas, atendendo a 500 alunos, como isso pode dar certo?
                Os espaços escolares não estão aparelhados para enfrentar as demandas de hoje, não basta computadores, não significa revolução. Vejo nas escolas aparelhos tecnológicos chegando, mas a falta de tempo, de organização, de planejamento ainda vigoram. Nossas escolas são como casas de cristal, frágeis. Muitas ações governamentais são louváveis enquanto projeto, mas e o dinheiro? É preciso mais dinheiro para a educação. Hoje faltam professores, amanhã faltarão médicos, engenheiros, filósofos, comunicadores, gente qualificada e formada para seguir construindo o país. A Educação está entregue em mãos que pedem, mais uma vez, seriedade, objetividade e políticas públicas que resgatem o profissional para sua vocação: educar. Com dignidade.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Os versos acima foram publicados originalmente no livro "
Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.  Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Menina, amanhã de manhã

Hoje a dica mais uma vez é musical. Vejam que maravilha: Orquestra Sinfônica e coro do Estado de São Paulo, apresentando uma música de Tom Zé, na voz de Mônica Salmaso. Imperdível!!! Aproveitem.

http://www.youtube.com/watch?v=sivP3e6ipB0

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Morte de Chuquinha

                                                                                                                                       Fernando Arosa


            ¾ Dona Ivete, ô Dona Ivete! ¾ gritou Georgina, aflita e preocupada.
            ¾ O que foi, menina,? Que aflição!
            ¾ Não tenho boas notícias, não.
            ¾ Ah, meu Deus, Luisinho, Carlinhos, Dayse, quem foi, o que aconteceu?
            ¾ Não foi nada com os meninos. Calma, é com a Chuquinha.
            ¾ Já falei para não deixarem a porta...
            ¾ Não adiantou, Dona Ivete. Chuquinha ´tá morta.
            Foi um desalento. Nunca tinham vivido tal tristeza. Foi a primeira vez que se experimentava a ausência infinita de alguém. Nunca mais veriam Chuquinha, companheira das horas mais divertidas. Era quase humana!. Melhor: não falava a língua dos adultos.
            Muitas foram as participações: almoço de domingo, dias de trovoada, passeios de bicicleta, estava lá, uma galinha exemplar, com olhar participativo, gestos peculiares, andar expressivo. Várias vezes tentaram imitá-la, mas nem os meninos, nem as meninas da rua conseguiam alcançar a destreza de Chuquinha.
            Dayse passou uma temporada levando Chuquinha para o convívio das cobertas e travesseiros. Julgava que o tempo poderia aplacar sua amiga. Amizade era aquela. Dayse e Chuquinha! Que firmeza de propósitos! Que ética!
            Os meninos a tratavam com certa desconsideração. Nas ruas do bairro, colocavam a penosa exposta a todo tipo de julgamento; não a poupavam. Sabiam que suas asas não eram suficientes para o voo, mas, mesmo assim, não podiam perder a aventura. E assim, foi lançada, do alto da mangueira, no centro da praça que era envolvida por ruas com nomes de flor: rua das violetas, das rosas, das margaridas. Ruas que faziam do Valqueire, no Rio de Janeiro, um grande quintal, o deslimite dentro das fronteiras da propriedade.
            Chuquinha fora envenenada.
            A notícia correu, assim como as lágrimas no ritual de despedida, feito no fundo do quintal de sua casa. Lá ainda hoje há quintais, alguns animais estimados, mas Chuquinha, fotografada em papel Kodak, permaneceu na vida dos meninos que cresceram e se recordam, junto com Dona Ivete, do sol que batia na janela e iluminava os almoços de família.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Complexo de subtração

Fernando Arosa


                Ronda entre nós mais uma síndrome, uma sequência de eventos sintomáticos que nos permite a classificação de complexo de subtração.
                Sabe-se que precisamos classificar tudo para que a vida pareça um pouco mais segura, mas agora me sinto atingido diretamente e de forma enviesada pelo complexo de subtração, explico: perceba a fala            das pessoas que emitem opinião no seu cotidiano, muitas delas se colocam à parte de tudo. Já percebeu? Nunca se fazem incluir no objeto criticado, o que é normal, mas peço apenas um pouco só de autocrítica.
                A palavra povo é um exemplo desse complexo, afinal, povo é sempre o outro, o resto, aqueles, nunca eu.
                Nossa última eleição fortalece a definição desse mal, pois analfabeto é só o Tiririca, o desonesto é só o político, corrupto é todo mundo menos eu.
                Quando se trata de ofensa, então, a coisa fica mais complexa, pois pobreza virou arma. Circulam na Internet, nos chamados sites de relacionamento, as mais diferentes opiniões sobre Dilma e Serra, até aí tudo bem, opiniões diversas alimentam a fome democrática, nada mais saudável, porém, opiniões curtas e não fundamentadas servem apenas para fazer crescer o ódio e a segregação. Opiniões como “essa corja”, “esses pobres vão ver”, não são opiniões, são julgamentos que fazem de seus donos indivíduos que se subtraem do todo, vendo-se como especiais, aqueles que, não se sabe por que, se consideram acima do bem e do mal.
                Fico sem saber a que classe pertenço, qual grupo me identifica como, pelo menos, próximo. Serei eu rico ou pobre? Classe C ou D? Povo pode ser inteligente? Caramba, e se eu não tivesse uma religião? E se a partir de agora eu decidir me candidatar a algum cargo público, me tornarei corrupto compulsoriamente?
                Subtraio-me, então, como os outros, e percebo que não há cura para esse mal. Peço perdão por tudo que aparento ser e, por favor, “me incluam fora dessa”.


domingo, 31 de outubro de 2010

Linha Vermelha

Fernando Arosa

         Foi num rastro de sangue que a pista ficou dividida: de um lado a multidão, do outro a dúvida.
         Nunca se ouviu falar daquela mulher estirada ali no chão, morta, com tiros na cabeça, ela era de fato desconhecida da multidão, bala perdida, mulher vitima de bala perdida. Multidão adora. O sangue ainda escorria, estranho porque formava uma linha divisória atravessando a pista; de fato era da multidão que, talvez, viesse a mais estranha forma de admiração daquele líquido, a multidão comentava da violência, medrosa, e permanecia ali, admirando, como se tentasse cerzir-se a si própria, uma multidão nervosa.
         Ele sabia, mas não contou pra ninguém. Perdeu a inocência. Sua dúvida era se um dia poderia se ver livre daquele tormento, mas ... Ela, coitada, sabia dos riscos...., mas da multidão ali presente só ele sabia o motivo daquela bala perdida.
         Culpado ou inocente.
         Até parece que sabemos responder questões com duas opções apenas. Nunca. Se o mundo fosse feito de dois lados ... claro que teve inocência, coisa de padre, mas como poderia saber que ela fazia aquilo, gananciosa, era amiga desde a infância, nunca poderia acreditar que ela o envolveria nesse tipo de coisa tão moderna. Caramba, ele sabia, mas não podia dizer, confissão não se revela, coisa de padre!
         Resolveria um dia acabar com essa angústia, mas como saber quando? Teria que continuar fazendo seu trabalho comunitário, será que os outros sabiam de sua função? “Clarissa não podia ter feito isso comigo”. Ele sabia só daquele dia em diante, até então fora , digamos, enganado, só queria ajudar aquelas mulheres, no Hospital universitário elas iam e tinham tratamento. Clarissa foi criada ali, no Alemão, ajudava todo mundo, tinha virado médica, gananciosa, faceira, circulava ali com permissão, não morava mais, tinha ido pra ilha, Jardim Guanabara.
         Ele nunca poderia ter se envolvido, mas agora, já era. Aquele rastro de sangue dividira também sua pista em dois precipícios. Clarissa, morena, doutora morena, gente boa, atendia as mulheres na ginecologia. Padre Antonio sabia disso e encaminhava aquela gente sem preparo pra lá. Da confissão teve a certeza de que o homem quis virar deus. Óvulo. Banco de esperma. Fecundação. Crime.
         Clarissa tinha se envolvido numa gangue, conseguiria uma grana. Orgulhosa, queria comprar casa pra família. Isso dava uma grana!!! Célula tronco, venda pro exterior. No fundo sabia que não podia, mas não tinha nenhuma certeza sobre o assunto, não tinha tido tempo pra pensar sobre isso.
         Prometeu, recebeu a grana , foi pega, não entregou a mercadoria a tempo, perdeu o lote. Prometeu outro lote, não deu tempo. Foi acionado o pessoal do Alemão pra dar um fim, bala perdida. Clarissa não podia ter feito isso com ele. O padre tinha boa intenção. Do corpo dela, a multidão conseguiu o cordão, a aliança. Da alma dela, ninguém deu conta, Antônio saiu de fininho. Na pista, uma linha vermelha separa a fé, a grana e o prazer de ver o outro se esvaindo.


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Casamento



 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.


terça-feira, 26 de outubro de 2010

Aviso Importante

Fernando Arosa


                Sei que alguns ficarão com inveja, coisa de humanos, sei que outros vão ignorar o fato, colocando-se à margem, muitos praguejarão, mas os mais chegados vão entender: Deus me avisou: faltam apenas dez dias para o mundo acabar.
                Não me disse a forma, sequer o horário, mas me identificou como merecedor (afinal pago meus impostos em dia), aquele que sabe o dia do fim. Todos estão no mesmo barco, o mundo acabará daqui a dez dias, portanto tratem de se preparar.
                Decidi, obedecendo minha obsessão, listar, para organizar meus últimos dez dias na Terra. Foi difícil. Aliviado, porei em prática tudo que listei, com possibilidades de acréscimo, jamais de exclusão de algo.
                No décimo dia, em contagem regressiva, farei de tudo para convencer minha família a me acompanhar nessa tarefa, corro o risco de não creditarem, mas de toda forma, tenho que tentar. Neste décimo dia, pretendo reunir meus textos e, incansavelmente, publicá-los. Quero ter a chance de ouvir alguns últimos comentários sobre o que escrevi.
                No nono dia, reunirei os livros que não terminei de ler, vou ver se dou conta deles.
                No oitavo dia, prepararei um churrasco comemorativo pela vida, chamarei alguns amigos que não vejo há tempos, aqueles da faculdade, do trabalho de início de carreira, alguns chefes antigos, somente os que merecerem.
                No sétimo dia, pretendo passar o dia na praia, aproveitando o sol, a paisagem, falta ainda escolher  em que praia, no mundo, estarei.
                No sexto dia, verei todas as fotos da vida, dando chance à memória, à melancolia, à saudade, todos esses sentimentos, de estarem presentes em mim pela última vez.
                No quinto dia, brincarei o dia todo com meus filhos, até a exaustão, fazendo deste dia o melhor dia para eles, ficarei na memória como o pai mais divertido, mais risonho, mais feliz de tê-los ali por perto.
                No dia seguinte, quarto dia, mandarei os filhos para a casa da avó para namorar, dormir, comer, namorar, dormir, comer...
                O terceiro dia ficará para a reflexão. Irei a um templo silencioso para a revisão do tempo vivido, coisa que não tenho tido tempo para fazer.
                No segundo dia, a festa será de tirar o fôlego. Chamarei os amigos recentes, os mais chegados, os amigos dos amigos, uma reunião de despedida mesmo. Muitos queijos, vinhos (para os que bebem), camarões (vou me atirar neles, com um antialérgico do lado), sorvetes, comida, comida, comida (coisa de gordo).
                No último dia, em casa, com  a mulher, os filhos, os familiares (somente os agradáveis),  ouvindo a boa música, comendo uma comidinha leve, esperarei que tudo se acabe.
                E você, o que fará?

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Paráfrase e cinismo

Fernando Arosa 


            Como curioso que sou, ando , voltando para casa, a observar as pessoas, a ouvir conversas alheias, a reparar naquilo que faz do dia algo mais interessante; tenho que bisbilhotar, caso contrário, a vida se torna enfadonha, chatinha mesmo.
            Ouço de tudo: desde barulhos ensurdecedores que me fazem querer alcançar a perfeição da surdez assistida, como palavrões das mais variadas origens, vindas de bocas bem novas (ô criançada maleducada! Como diria minha avó). Imagino o dia em que as pessoas sejam mais cerimoniosas, sim, porque o meio-termo nossa sociedade não conseguiu alcançar.
            Vejo também muitos exemplos de que tudo se aprende: a ser cínico , ou seja, aquele que pratica uma moral ascética com um desprezo incorrigível às regras e conveniências sociais. Outro dia (eu diria com mais rancor: em várias outras ocasiões), vi uma senhora dos seus 70 anos furando a fila dos idosos, o que explica a que velocidade anda o cinismo e há quanto tempo circula entre nós, afinal, aprendemos tudo o que vemos e vivenciamos, ensinamos, também, aquilo que acreditamos (ou introjetamos).
            Aprende-se também a ser solidário, isso é um tipo de inteligência. Assisti muitas vezes sinais de solidariedade: ceder o lugar no ônibus, carregar o peso até o elevador, esperar o outro passar em cruzamento, enfim, vários sinais de que temos salvação.
            O que me preocupa por muitas vezes é o que aprendemos sem perceber. Certa vez, uma pessoa com quem tive relações de trabalho, evitando falar comigo, sem motivo, aperta o passo e quase cai de tanto que queria fugir, fiquei pensando: o que será que fiz?, Logo em seguida, vi que ela deve ter aprendido isso de alguma maneira, em algum lugar: fugir para não falar, afinal, sou de outra estirpe (divaguei). Ora, não precisa, nem sempre o outro quer falar contigo, não é mesmo?!!! Basta seguir as regras sociais e cumprimentar...
            Esta semana, recebi um convite para o lançamento de um livro cujo título eu gostei muito: Inteligência se aprende, de Patrícia Lins e Silva. É fato: inteligências de todo valor podem ser aprendidas. Fiquei curioso. É certo que o livro de Patrícia deve apresentar elementos importantes que sustentem sua tese, afinal é uma pesquisadora e educadora que fala, com certeza aprenderemos muito.
            Preciso agora observar com mais atenção o calor das ruas com a esperança de que a inteligência também seja transmutada em ações, acho que isso vai acontecer um dia...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Passado, presente, que futuro é esse?

Fernando Arosa


── Bom dia D. Lívia!

── Bom dia, meu rapaz! Na verdade, não está um bom dia, não...

── Mas o que houve, D. Lívia, a senhora sempre inteirona?!

── É, mas hoje acordei com dor de estômago.

── Anda comendo errado, hein, D. Lívia, não pode.

── Nada...a gente fica velha e o estômago também...o que houve com aquele rapaz que vendia ervas? Nunca mais o vi por aqui.

── O Paulinho? Ah, cassaram a licença dele.

── E o meu boldo?!!!

── Agora a senhora pode pedir delivery.

── Delivery?

── É, mas só pras clientes antigas.

── Por quê?

── É clandestino...não permitem mais vender aquelas ervas aqui na feira, não.

── Quer dizer que...

── Quer dizer que a senhora pra tomar banho de descarrego, tirar quebranto, inchaço... só no delivery ou na farmácia.

── E na farmácia vende remédio contra quebranto?

── Isso eu já não sei.

── E será que atende delivery também?

── Ah, isso é certo, farmácia tem “nourrau”, D. Lívia. Eu sei é que Paulinho tá passando poucas e boas...

── Pois é...acho que vou andando.

── E não vai levar uma caixinha de caqui, umas uvas? ‘Tá tudo fresquinho.

──Acho que não, vou pra casa.

Saiu caminhando lentamente, entrou na farmácia, comprou biscoitos, balas e outros docinhos pra adoçar a vida. E foi pra casa confusa e exausta de passado.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Cântico Negro

José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Como você reza?

Fernando Arosa
Retomei minhas leituras, ainda saindo de um tempo de alienação (todos nós temos esse direito), e me coloquei no mundo novamente. Achei que podia ter ficado lá um pouco mais, naquela Pasárgada revisitada, pois o que vejo aqui não me faz “amigo do rei”.
            Passo os olhos no noticiário, já morto pelo tempo, e não pude me alienar novamente: o véu está proibido.
            Lembro-me da minha primeira experiência religiosa, ou melhor, da minha primeira incursão no mundo da reflexão. Ainda pequeno de tamanho e de vivência, acompanhei a passagem de uma procissão. Lembro dela como se fosse hoje: cantoria, imagem do “senhor morto” (quanta dúvida!!! Senhor? Morto? Uma estátua? Deitada!!!), umas pessoas descalças, outras vestidas para passeio, um incenso, minha mãe, meu pai, velas, minha avó e outras senhoras com véu de renda, umas em preto, outras em branco. Era tudo muito envolvido em um tom de som que invade o peito e provoca choro, tive vontade de chorar sem saber o motivo.
            Pensava, naquele momento, que o senhor morto estava indo para um lugar em que ficaria bem, otimista que era. Minha reflexão maior veio da tristeza, da disposição das pessoas em procissão (por que as mais arrumadas iam na frente e as mais simples iam lá atrás?) e o que mais me intrigava era o véu. Mais tarde soube que o véu católico representava respeito, retidão. Vi, durante algum tempo, algumas senhoras com véu, na missa, na rua, na vida. Mas ali era permitida a retidão e seu véu.
            Atualmente não vejo mais católicos retidos em vestimenta significativa, não por proibição, mas por um tempo em que a crença modernizada abriu espaço para outras formas de expressão.       
            Volto ao noticiário, depois dessas lembranças, e retorno ao tempo de escola quando aprendi que da França vieram ideais que transformaram o modo de pensar em todo o ocidente: liberdade, igualdade e fraternidade. Que lição, que coragem, que revolução! Os tempos mudaram e, em nome da segurança, o véu islâmico foi proibido na França.
            Crenças são crenças e devem ser respeitadas. Minha formação cristã me permite reafirmar isso e crer que algo errado acontece no velho continente. A imigração, os movimentos humanos pela Terra, sempre aconteceram e com eles o medo da diferença vem à tona. Como enfrentar essa questão? Acho que tolerância, já gasta em palavra, é a prática que devemos exercitar. O direito de cada um é o direito de todos. Burca, niqab, véu, crucifixo, turbante, qualquer símbolo que traduz uma crença deve ser visto como liberdade, direito, filosofia de vida.
            E a humanidade se perde mais um pouco...


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lista de desejos

Fernando Arosa

                Toda vez que se aproxima um novo ano, que fazemos aniversário, que levamos um susto com a saúde, que mudamos de emprego, ou ainda, que a megasena acumula, pensamos em novos desejos ou relembramos antigos.
                Não sei precisar se tudo o que penso ocorre com todo mundo, mas toda vez que vejo coisas comuns a todos, me identifico com algumas, inventariar desejos é uma das minhas atividades diárias, organiza minhas angústias.
                Faço isso com meus desejos e projetos. A idade, um pouco além dos quarenta, já me faz enumerar coisas mais possíveis. Ora vislumbro as possíveis fáceis, ora possíveis difíceis. Por exemplo, perder peso é possível difícil. Outra coisa difícil é ser compreensivo com os incompetentes, paciente, então, é coisa inalcançável.
                Elaborei, na iminência de me tornar milionário, em: passar uma semana mudo, em lugar desconhecido. Em seguida, voltar ao trabalho, alegando ter passado por problemas particulares e não contar nada a ninguém, nunca revelar que fiquei rico. Mais adiante, já com a família orientada, partir para as compras, agora a fantasia vai longe, não só geograficamente como nas entranhas da imaginação.
                Viajar, desejo comum, muita gente faria o mesmo. Comprar casas, quero uma em cada lugar que eu gostei de conhecer: Bahia, Búzios, Carcassone, Barcelona e, pasmem, Aracaju, entre outros.
                Comprarei um estúdio para gravar minhas músicas preferidas, cantando, calma, não enviarei aos meus amigos, gravo e apago, ok?
                Agora, vai mais uma: uma fábrica de tortas, sim, uma fábrica de torta e, na sequência, uma clínica, um SPA, seu antídoto...
                Tenho aí já gastos alguns milhões, sem esquecer, é claro, de presentear alguns amigos, familiares e tentar me livrar dos pecados terrenos. Mas o que mais me preocupa é a verba que encaminharei aos cientistas políticos e economistas para que inventem um novo sistema, sustentável, que acabe com esse tal de dinheiro, que compra algumas felicidades, mas que faz a gente pirar também.


domingo, 3 de outubro de 2010

... Mas eu chego lá

Fernando Arosa

                 “Obrigado”.

                “Bom dia, esse ônibus passa na Praça Sibelius?”

                 “Senhora, a Igreja é no próximo ponto...”

                “Ei, senhor, pode sentar aqui...”

                “Você precisa de alguma coisa?”

                “Pois não, posso ajudar?”

                “Motorista, o senhor pode me deixar no ponto mais próximo à estação do metrô em Botafogo?”

                E o dia corria normalmente. A turista chegada há pouco ficou abismada com tanta educação em apenas uma viagem de ônibus. Contou-me que ficara muitíssimo bem impressionada com a maneira como os passageiros daquela linha de ônibus que havia embarcado se dirigiam ao motorista, ao trocador, entre os próprios passageiros, disse-me que sentia um ar de harmonia e que essa não era a imagem que tinha sobre o povo daqui, aliás, de nenhum lugar.
                Tem certeza, Marisa - perguntei-lhe- será que não foi uma coincidência? Sei lá, acho que pode ter sido coincidência, tenho visto tanta falta de educação por aí.
                É verdade – respondeu-me – mas sei lá, me senti num mundo da fantasia onde cada um daqueles seres tivessem se tornado mais solidário, mais compreensivo, prestativo, de boa vontade.
                Insisti em dizer que nada tinha a ver com minha experiência, pois já estava meio cansado de tanto egoísmo no trânsito, de tanta falta de limite na vizinhança, no prédio, na fila do supermercado, mas ela, embevecida, tornou a citar exemplos de boas maneiras vividas em todo lugar que passou.
                Será que você anda meio estressado demais e por isso as pessoas te tratam mal? Perguntou ela sorrindo, com um ar de “você colhe aquilo que planta”.
                Fiquei com certa má vontade para responder, tornei isso claro e ela insistiu: acho que o que vivi tem a ver com o que estava sentindo: estou feliz de estar conhecendo essa cidade tão linda e aí tive a sorte de estar no lugar certo, com as pessoas certas, na hora certa, será que é isso?
                Certamente, Marisa viveu o que é possível, é claro que não podemos negar que ainda há no mundo gente que entende de gente, gente que sabe tratar bem os outros, que sabe conviver coletivamente, é claro que há. Na verdade, o exercício da educação e da tolerância e da gentileza e da solidariedade é que darão jeito nessa desordem.
                Resolvi entrar num ônibus com um pouco mais de resolução positiva. Perdi logo a paciência porque não havia troco para R$10,00. Assim não dá, né? Mas eu chego lá.
               


          




quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Saudade da Camicleta

Fernando Arosa


                Setembro de 2010: a televisão brasileira completa 60 anos. Quem sou eu pra falar de televisão? Há tantos comunicólogos, estudiosos, pesquisadores sobre esse fenômeno que toma conta de nosso país; teorias, análises, projetos, críticas. Quem sou eu pra falar de televisão? Um telespectador. É desse lugar, do lado de quem cresceu com a companhia dela. “Ei, psit, você aí da poltrona...”, assim nos chamava Renato Aragão, nos fazendo interlocutores diretos desse veículo tão polêmico e controverso.
                “Todo dia é dia, toda hora é hora de saber que esse mundo é seu. Se você for amigo e companheiro, com alegria e imaginação. Vivendo e sorrindo, criando e rindo, você será feliz e todos serão também.” Essa é a primeira lembrança que me vem, pensando na televisão no lugar de quem assistiu muito, a primeira geração criada por ela no famoso papel de “babá eletrônica”. É desse lugar que penso hoje no papel da televisão numa sociedade cheia de problemas. Onde estão as promessas de felicidade? Será que eram apenas imaginação?
                Minhas lembranças são as de uma geração que acompanhou entre outras coisas a evolução de uma dramaturgia riquíssima. Os atores brasileiros, advindos do teatro, fizeram da nossa televisão um fator de união nacional. É claro que não podemos esquecer a faca de dois gumes que isso é: o corte afiado que ela traz, provocou também uma avalanche de consumo descabido e nada cidadão, mas a televisão nos deixou na memória: Zilka Salaberry, a eterna Dona Benta e sua companheira de sítio, a fantástica Jacyra Sampaio, única Tia Anastácia. Todo um elenco de maravilhosas formas de pensar o país como Flávio Migliaccio e Paulo José em Shazam e Xerife, o Vila Sésamo, as séries que reformaram o pensamento, as transmissões de imagens inesquecíveis do futebol e tantos outros exemplos de bons feitos. Mesmo desse lugar de saudade, de melancólica lembrança, pergunto sobre o papel integrador e educador que a televisão deveria ter.
                Confesso que falo de uma tevê aberta, aquela que o Brasil conhece desde muito tempo, não aquela de recente história, a tevê a cabo, essa eu não conheço a programação. A televisão comercial brasileira é uma concessão, disso todo mundo sabe, mas e o retorno educativo que pretendíamos dela? A programação aberta hoje unifica uma estética que pouco tem a ver com a cara do Brasil. Há exceções óbvias, basta acessar a programação da TV Brasil para se sentir brasileiro. Reclamo um pouco aqui dessas soluções monocromáticas sugeridas pela TV Globo, reclamo também da falta de respeito ao expectador quando vejo um domingo inteiro transformado em programa de auditório no SBT, lastimo a falta de cumplicidade dos meios de comunicação de massa quando precisamos deles para, de forma democrática, pensar num país melhor.
                “A televisão me deixou burro, muito burro demais” bradavam os Titãs e minha geração seguiu adiante assim mesmo, querendo “dar certo” na vida.  Nossa televisão faz 60 anos dos quais 20 em busca de um lugar no mundo globalizado, repetindo fórmulas, copiando, trazendo a público a falsa igualdade, expondo estereótipos, criando ilusões sem fantasia. Já vivemos momentos melhores, aguardo melhores cenas dos próximos capítulos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Daquela manhã, saí mais forte

Fernando Arosa 

            É comum familiares se encontrarem. Todos já viveram isto: almoços, lanches no final do domingo, dias comemorativos, dias não tão comemorativos, alegrias e tristezas, sabores e dissabores, mas encontros.
            O céu nublado colaborou para tornar o dia mais pesado que de costume. Às vezes, os encontros demarcam retomadas de rumo, projeções de futuro. Outras vezes, são incursões naquilo que o abandono escondeu e criou falsas finitudes.
            Daquela manhã, saí mais forte. Os encontros de agora por diante serão mais reais, mais claros, a falsa ideia do passado finito terminou. Não, o passado estava ali, transfigurado em escadarias sujas, salas escancaradamente devassadas, um castelo em ruínas. Portas sem entradas e intactas de futuro. Um velho em antigo uniforme professoral nos abriu novamente, com ar de alívio, a possibilidade do real: “ que bom que vieram, chega, agora é a hora, terminem com isso”.
            A respiração pequena de susto nos fez nublar a visão e, de volta ao presente, confirmamos a sobrevivência. Ufa! Visitar castelos em ruína não é nada fácil!!!
            Daquela manhã, saí um pouco mais velho e um pouco mais forte. De bodoque em punho, volto a atirar para frente. Minha arma de agora é feita do sorriso do filho que me chama para brincar.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Estrela do Mar - Marino Pinto e Paulo Soledade

Essa é para o final de semana: uma cantora maranhense chamada Flávia Bittencourt cantando uma pérola de nosso cancioneiro, antes imortalizado por Dalva de Oliveira. Espero que gostem.
http://www.youtube.com/watch?v=8DO6bMUxMk0

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pessimismo e otimismo

                Certa vez ouvi uma dita piada que contava a história de dois irmãos: um otimista e outro pessimista.
                O pessimista ganhou uma bicicleta e reclamou, preocupado, aturdido com o presente frente à possibilidade de cair, fraturar o fêmur, deslocar os ombros, “que desgraça”!
                O otimista, por sua vez, ganhou, de presente,um recipiente cheio de esterco, ao que ele perguntou saltitante, “oba, onde está meu cavalo?”
                Hoje, diante de tantos fatos inusitados, chego ao fim do dia com um inventário de lamúrias: dormi mal na noite anterior, no trabalho, nada funcionou, comprei um frango assado estragado, minha sogra quebrou a rótula, minha filha teve a milésima crise de alergia e continuo gordo, mas quero ser otimista.
                As eleições estão aí me parecendo um pouco com aquela bicicleta perigosa e mais ainda com o recipiente mal cheiroso, mas devo adiantar que preciso ser otimista. O mal cheiro da política não poderá nos atingir a ponto de fazer-nos desistir; no meu estado, a escolha do governador é quase impossível, temos bons candidatos a deputado, mas a senador a situação anda lamentável, mas mesmo assim penso em, com otimismo, esquecer das coligações inexplicáveis e votar, tentando manter um razoável coerência.
                Minhas promessas de otimismo são pura arma contra a loucura, ou serão a própria? Não sei ao certo, deixa eu dormir porque a hora anda e amanhã começará um novo dia.
                Ah, esqueci: hoje comecei uma dieta!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Hoje venho com música e poesia. O link abaixo nos leva a um vídeo no youtube. Lá, Maria Bethânia, uma das nossas grandes intérpretes, recita um trecho de um poema de Fernando Pessoa, Aniversário, e canta três canções muito bonitas: Lua Vermelha, de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown; Uma Canção Desnaturada, de Chico Buarque e Gita, de Raul Seixas.
Espero que gostem.
http://www.youtube.com/watch?v=GYh_0D7mBpI

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um dedo, um corte

 Fernando Arosa
No corte do dedo
Indicador
Iluminado pela cor da vida
Misturava-se a
Terra molhada
Do quintal,
Lá do fundo do quintal,
Além do laguinho dos patos.

E o fim era um morro
Com bambuzal

Não tínhamos o tempo para o
Choro,
Havia a profecia do curto
Tempo

Do canto da mesa
Avisto um relógio,
A santa ceia,
O cesto de laranjas,
E não percebo que deveria
Parar o tempo ali.

Reuni tudo o que via
E com o dedo limpo
E os ouvidos devidamente preenchidos
De conselhos,
Saí e voltei
Com um certo olhar de
Futuro do pretérito.

¾ Que foi, menino, vá, vá correr.

E acordei, todos os dias,
Dali em diante, com saudades, muitas
saudades.