domingo, 31 de outubro de 2010

Linha Vermelha

Fernando Arosa

         Foi num rastro de sangue que a pista ficou dividida: de um lado a multidão, do outro a dúvida.
         Nunca se ouviu falar daquela mulher estirada ali no chão, morta, com tiros na cabeça, ela era de fato desconhecida da multidão, bala perdida, mulher vitima de bala perdida. Multidão adora. O sangue ainda escorria, estranho porque formava uma linha divisória atravessando a pista; de fato era da multidão que, talvez, viesse a mais estranha forma de admiração daquele líquido, a multidão comentava da violência, medrosa, e permanecia ali, admirando, como se tentasse cerzir-se a si própria, uma multidão nervosa.
         Ele sabia, mas não contou pra ninguém. Perdeu a inocência. Sua dúvida era se um dia poderia se ver livre daquele tormento, mas ... Ela, coitada, sabia dos riscos...., mas da multidão ali presente só ele sabia o motivo daquela bala perdida.
         Culpado ou inocente.
         Até parece que sabemos responder questões com duas opções apenas. Nunca. Se o mundo fosse feito de dois lados ... claro que teve inocência, coisa de padre, mas como poderia saber que ela fazia aquilo, gananciosa, era amiga desde a infância, nunca poderia acreditar que ela o envolveria nesse tipo de coisa tão moderna. Caramba, ele sabia, mas não podia dizer, confissão não se revela, coisa de padre!
         Resolveria um dia acabar com essa angústia, mas como saber quando? Teria que continuar fazendo seu trabalho comunitário, será que os outros sabiam de sua função? “Clarissa não podia ter feito isso comigo”. Ele sabia só daquele dia em diante, até então fora , digamos, enganado, só queria ajudar aquelas mulheres, no Hospital universitário elas iam e tinham tratamento. Clarissa foi criada ali, no Alemão, ajudava todo mundo, tinha virado médica, gananciosa, faceira, circulava ali com permissão, não morava mais, tinha ido pra ilha, Jardim Guanabara.
         Ele nunca poderia ter se envolvido, mas agora, já era. Aquele rastro de sangue dividira também sua pista em dois precipícios. Clarissa, morena, doutora morena, gente boa, atendia as mulheres na ginecologia. Padre Antonio sabia disso e encaminhava aquela gente sem preparo pra lá. Da confissão teve a certeza de que o homem quis virar deus. Óvulo. Banco de esperma. Fecundação. Crime.
         Clarissa tinha se envolvido numa gangue, conseguiria uma grana. Orgulhosa, queria comprar casa pra família. Isso dava uma grana!!! Célula tronco, venda pro exterior. No fundo sabia que não podia, mas não tinha nenhuma certeza sobre o assunto, não tinha tido tempo pra pensar sobre isso.
         Prometeu, recebeu a grana , foi pega, não entregou a mercadoria a tempo, perdeu o lote. Prometeu outro lote, não deu tempo. Foi acionado o pessoal do Alemão pra dar um fim, bala perdida. Clarissa não podia ter feito isso com ele. O padre tinha boa intenção. Do corpo dela, a multidão conseguiu o cordão, a aliança. Da alma dela, ninguém deu conta, Antônio saiu de fininho. Na pista, uma linha vermelha separa a fé, a grana e o prazer de ver o outro se esvaindo.


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Casamento



 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.


terça-feira, 26 de outubro de 2010

Aviso Importante

Fernando Arosa


                Sei que alguns ficarão com inveja, coisa de humanos, sei que outros vão ignorar o fato, colocando-se à margem, muitos praguejarão, mas os mais chegados vão entender: Deus me avisou: faltam apenas dez dias para o mundo acabar.
                Não me disse a forma, sequer o horário, mas me identificou como merecedor (afinal pago meus impostos em dia), aquele que sabe o dia do fim. Todos estão no mesmo barco, o mundo acabará daqui a dez dias, portanto tratem de se preparar.
                Decidi, obedecendo minha obsessão, listar, para organizar meus últimos dez dias na Terra. Foi difícil. Aliviado, porei em prática tudo que listei, com possibilidades de acréscimo, jamais de exclusão de algo.
                No décimo dia, em contagem regressiva, farei de tudo para convencer minha família a me acompanhar nessa tarefa, corro o risco de não creditarem, mas de toda forma, tenho que tentar. Neste décimo dia, pretendo reunir meus textos e, incansavelmente, publicá-los. Quero ter a chance de ouvir alguns últimos comentários sobre o que escrevi.
                No nono dia, reunirei os livros que não terminei de ler, vou ver se dou conta deles.
                No oitavo dia, prepararei um churrasco comemorativo pela vida, chamarei alguns amigos que não vejo há tempos, aqueles da faculdade, do trabalho de início de carreira, alguns chefes antigos, somente os que merecerem.
                No sétimo dia, pretendo passar o dia na praia, aproveitando o sol, a paisagem, falta ainda escolher  em que praia, no mundo, estarei.
                No sexto dia, verei todas as fotos da vida, dando chance à memória, à melancolia, à saudade, todos esses sentimentos, de estarem presentes em mim pela última vez.
                No quinto dia, brincarei o dia todo com meus filhos, até a exaustão, fazendo deste dia o melhor dia para eles, ficarei na memória como o pai mais divertido, mais risonho, mais feliz de tê-los ali por perto.
                No dia seguinte, quarto dia, mandarei os filhos para a casa da avó para namorar, dormir, comer, namorar, dormir, comer...
                O terceiro dia ficará para a reflexão. Irei a um templo silencioso para a revisão do tempo vivido, coisa que não tenho tido tempo para fazer.
                No segundo dia, a festa será de tirar o fôlego. Chamarei os amigos recentes, os mais chegados, os amigos dos amigos, uma reunião de despedida mesmo. Muitos queijos, vinhos (para os que bebem), camarões (vou me atirar neles, com um antialérgico do lado), sorvetes, comida, comida, comida (coisa de gordo).
                No último dia, em casa, com  a mulher, os filhos, os familiares (somente os agradáveis),  ouvindo a boa música, comendo uma comidinha leve, esperarei que tudo se acabe.
                E você, o que fará?

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Paráfrase e cinismo

Fernando Arosa 


            Como curioso que sou, ando , voltando para casa, a observar as pessoas, a ouvir conversas alheias, a reparar naquilo que faz do dia algo mais interessante; tenho que bisbilhotar, caso contrário, a vida se torna enfadonha, chatinha mesmo.
            Ouço de tudo: desde barulhos ensurdecedores que me fazem querer alcançar a perfeição da surdez assistida, como palavrões das mais variadas origens, vindas de bocas bem novas (ô criançada maleducada! Como diria minha avó). Imagino o dia em que as pessoas sejam mais cerimoniosas, sim, porque o meio-termo nossa sociedade não conseguiu alcançar.
            Vejo também muitos exemplos de que tudo se aprende: a ser cínico , ou seja, aquele que pratica uma moral ascética com um desprezo incorrigível às regras e conveniências sociais. Outro dia (eu diria com mais rancor: em várias outras ocasiões), vi uma senhora dos seus 70 anos furando a fila dos idosos, o que explica a que velocidade anda o cinismo e há quanto tempo circula entre nós, afinal, aprendemos tudo o que vemos e vivenciamos, ensinamos, também, aquilo que acreditamos (ou introjetamos).
            Aprende-se também a ser solidário, isso é um tipo de inteligência. Assisti muitas vezes sinais de solidariedade: ceder o lugar no ônibus, carregar o peso até o elevador, esperar o outro passar em cruzamento, enfim, vários sinais de que temos salvação.
            O que me preocupa por muitas vezes é o que aprendemos sem perceber. Certa vez, uma pessoa com quem tive relações de trabalho, evitando falar comigo, sem motivo, aperta o passo e quase cai de tanto que queria fugir, fiquei pensando: o que será que fiz?, Logo em seguida, vi que ela deve ter aprendido isso de alguma maneira, em algum lugar: fugir para não falar, afinal, sou de outra estirpe (divaguei). Ora, não precisa, nem sempre o outro quer falar contigo, não é mesmo?!!! Basta seguir as regras sociais e cumprimentar...
            Esta semana, recebi um convite para o lançamento de um livro cujo título eu gostei muito: Inteligência se aprende, de Patrícia Lins e Silva. É fato: inteligências de todo valor podem ser aprendidas. Fiquei curioso. É certo que o livro de Patrícia deve apresentar elementos importantes que sustentem sua tese, afinal é uma pesquisadora e educadora que fala, com certeza aprenderemos muito.
            Preciso agora observar com mais atenção o calor das ruas com a esperança de que a inteligência também seja transmutada em ações, acho que isso vai acontecer um dia...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Passado, presente, que futuro é esse?

Fernando Arosa


── Bom dia D. Lívia!

── Bom dia, meu rapaz! Na verdade, não está um bom dia, não...

── Mas o que houve, D. Lívia, a senhora sempre inteirona?!

── É, mas hoje acordei com dor de estômago.

── Anda comendo errado, hein, D. Lívia, não pode.

── Nada...a gente fica velha e o estômago também...o que houve com aquele rapaz que vendia ervas? Nunca mais o vi por aqui.

── O Paulinho? Ah, cassaram a licença dele.

── E o meu boldo?!!!

── Agora a senhora pode pedir delivery.

── Delivery?

── É, mas só pras clientes antigas.

── Por quê?

── É clandestino...não permitem mais vender aquelas ervas aqui na feira, não.

── Quer dizer que...

── Quer dizer que a senhora pra tomar banho de descarrego, tirar quebranto, inchaço... só no delivery ou na farmácia.

── E na farmácia vende remédio contra quebranto?

── Isso eu já não sei.

── E será que atende delivery também?

── Ah, isso é certo, farmácia tem “nourrau”, D. Lívia. Eu sei é que Paulinho tá passando poucas e boas...

── Pois é...acho que vou andando.

── E não vai levar uma caixinha de caqui, umas uvas? ‘Tá tudo fresquinho.

──Acho que não, vou pra casa.

Saiu caminhando lentamente, entrou na farmácia, comprou biscoitos, balas e outros docinhos pra adoçar a vida. E foi pra casa confusa e exausta de passado.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Cântico Negro

José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Como você reza?

Fernando Arosa
Retomei minhas leituras, ainda saindo de um tempo de alienação (todos nós temos esse direito), e me coloquei no mundo novamente. Achei que podia ter ficado lá um pouco mais, naquela Pasárgada revisitada, pois o que vejo aqui não me faz “amigo do rei”.
            Passo os olhos no noticiário, já morto pelo tempo, e não pude me alienar novamente: o véu está proibido.
            Lembro-me da minha primeira experiência religiosa, ou melhor, da minha primeira incursão no mundo da reflexão. Ainda pequeno de tamanho e de vivência, acompanhei a passagem de uma procissão. Lembro dela como se fosse hoje: cantoria, imagem do “senhor morto” (quanta dúvida!!! Senhor? Morto? Uma estátua? Deitada!!!), umas pessoas descalças, outras vestidas para passeio, um incenso, minha mãe, meu pai, velas, minha avó e outras senhoras com véu de renda, umas em preto, outras em branco. Era tudo muito envolvido em um tom de som que invade o peito e provoca choro, tive vontade de chorar sem saber o motivo.
            Pensava, naquele momento, que o senhor morto estava indo para um lugar em que ficaria bem, otimista que era. Minha reflexão maior veio da tristeza, da disposição das pessoas em procissão (por que as mais arrumadas iam na frente e as mais simples iam lá atrás?) e o que mais me intrigava era o véu. Mais tarde soube que o véu católico representava respeito, retidão. Vi, durante algum tempo, algumas senhoras com véu, na missa, na rua, na vida. Mas ali era permitida a retidão e seu véu.
            Atualmente não vejo mais católicos retidos em vestimenta significativa, não por proibição, mas por um tempo em que a crença modernizada abriu espaço para outras formas de expressão.       
            Volto ao noticiário, depois dessas lembranças, e retorno ao tempo de escola quando aprendi que da França vieram ideais que transformaram o modo de pensar em todo o ocidente: liberdade, igualdade e fraternidade. Que lição, que coragem, que revolução! Os tempos mudaram e, em nome da segurança, o véu islâmico foi proibido na França.
            Crenças são crenças e devem ser respeitadas. Minha formação cristã me permite reafirmar isso e crer que algo errado acontece no velho continente. A imigração, os movimentos humanos pela Terra, sempre aconteceram e com eles o medo da diferença vem à tona. Como enfrentar essa questão? Acho que tolerância, já gasta em palavra, é a prática que devemos exercitar. O direito de cada um é o direito de todos. Burca, niqab, véu, crucifixo, turbante, qualquer símbolo que traduz uma crença deve ser visto como liberdade, direito, filosofia de vida.
            E a humanidade se perde mais um pouco...


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lista de desejos

Fernando Arosa

                Toda vez que se aproxima um novo ano, que fazemos aniversário, que levamos um susto com a saúde, que mudamos de emprego, ou ainda, que a megasena acumula, pensamos em novos desejos ou relembramos antigos.
                Não sei precisar se tudo o que penso ocorre com todo mundo, mas toda vez que vejo coisas comuns a todos, me identifico com algumas, inventariar desejos é uma das minhas atividades diárias, organiza minhas angústias.
                Faço isso com meus desejos e projetos. A idade, um pouco além dos quarenta, já me faz enumerar coisas mais possíveis. Ora vislumbro as possíveis fáceis, ora possíveis difíceis. Por exemplo, perder peso é possível difícil. Outra coisa difícil é ser compreensivo com os incompetentes, paciente, então, é coisa inalcançável.
                Elaborei, na iminência de me tornar milionário, em: passar uma semana mudo, em lugar desconhecido. Em seguida, voltar ao trabalho, alegando ter passado por problemas particulares e não contar nada a ninguém, nunca revelar que fiquei rico. Mais adiante, já com a família orientada, partir para as compras, agora a fantasia vai longe, não só geograficamente como nas entranhas da imaginação.
                Viajar, desejo comum, muita gente faria o mesmo. Comprar casas, quero uma em cada lugar que eu gostei de conhecer: Bahia, Búzios, Carcassone, Barcelona e, pasmem, Aracaju, entre outros.
                Comprarei um estúdio para gravar minhas músicas preferidas, cantando, calma, não enviarei aos meus amigos, gravo e apago, ok?
                Agora, vai mais uma: uma fábrica de tortas, sim, uma fábrica de torta e, na sequência, uma clínica, um SPA, seu antídoto...
                Tenho aí já gastos alguns milhões, sem esquecer, é claro, de presentear alguns amigos, familiares e tentar me livrar dos pecados terrenos. Mas o que mais me preocupa é a verba que encaminharei aos cientistas políticos e economistas para que inventem um novo sistema, sustentável, que acabe com esse tal de dinheiro, que compra algumas felicidades, mas que faz a gente pirar também.


domingo, 3 de outubro de 2010

... Mas eu chego lá

Fernando Arosa

                 “Obrigado”.

                “Bom dia, esse ônibus passa na Praça Sibelius?”

                 “Senhora, a Igreja é no próximo ponto...”

                “Ei, senhor, pode sentar aqui...”

                “Você precisa de alguma coisa?”

                “Pois não, posso ajudar?”

                “Motorista, o senhor pode me deixar no ponto mais próximo à estação do metrô em Botafogo?”

                E o dia corria normalmente. A turista chegada há pouco ficou abismada com tanta educação em apenas uma viagem de ônibus. Contou-me que ficara muitíssimo bem impressionada com a maneira como os passageiros daquela linha de ônibus que havia embarcado se dirigiam ao motorista, ao trocador, entre os próprios passageiros, disse-me que sentia um ar de harmonia e que essa não era a imagem que tinha sobre o povo daqui, aliás, de nenhum lugar.
                Tem certeza, Marisa - perguntei-lhe- será que não foi uma coincidência? Sei lá, acho que pode ter sido coincidência, tenho visto tanta falta de educação por aí.
                É verdade – respondeu-me – mas sei lá, me senti num mundo da fantasia onde cada um daqueles seres tivessem se tornado mais solidário, mais compreensivo, prestativo, de boa vontade.
                Insisti em dizer que nada tinha a ver com minha experiência, pois já estava meio cansado de tanto egoísmo no trânsito, de tanta falta de limite na vizinhança, no prédio, na fila do supermercado, mas ela, embevecida, tornou a citar exemplos de boas maneiras vividas em todo lugar que passou.
                Será que você anda meio estressado demais e por isso as pessoas te tratam mal? Perguntou ela sorrindo, com um ar de “você colhe aquilo que planta”.
                Fiquei com certa má vontade para responder, tornei isso claro e ela insistiu: acho que o que vivi tem a ver com o que estava sentindo: estou feliz de estar conhecendo essa cidade tão linda e aí tive a sorte de estar no lugar certo, com as pessoas certas, na hora certa, será que é isso?
                Certamente, Marisa viveu o que é possível, é claro que não podemos negar que ainda há no mundo gente que entende de gente, gente que sabe tratar bem os outros, que sabe conviver coletivamente, é claro que há. Na verdade, o exercício da educação e da tolerância e da gentileza e da solidariedade é que darão jeito nessa desordem.
                Resolvi entrar num ônibus com um pouco mais de resolução positiva. Perdi logo a paciência porque não havia troco para R$10,00. Assim não dá, né? Mas eu chego lá.